Há pouco mais de um século, as crianças foram sendo descobertas como seres humanos singulares, com necessidades e vontades próprias. Foi então que começou a oferta de materiais infantis para educação delas como os livros, revistas, miniaturas e brinquedos. Estes objetos, de caráter imaginativo e divertido, ajudam na compreensão do mundo adulto que, além de múltiplo e cada vez mais virtual, é essencialmente letrado.
Isto quer dizer que, desde muito cedo, as crianças são incluídas em um mundo no qual palavras escritas estão impressas nos mais diversos meios, como livros, revistas, placas de trânsito, avisos no metrô, cartões de banco e embalagens de biscoito. Todas as palavras, porém, são carregadas de significados e seus sentidos vão sendo descobertos pelas crianças na medida em que elas fazem uso em práticas sociais – ou não o fazem. Quer dizer: em famílias cujo ambiente é bastante letrado (culto), as crianças compreendem o uso da palavra escrita por meio de atividades que seus pais, familiares e amigos desenvolvem para comunicar-se e expressar-se. Em contrapartida, nos lares em que os pais sabem ler e escrever pouco, elas acabam copiando letras, sem compreender sua função na escrita.
Tanto para as crianças que já entenderam o uso da palavra quanto para aquelas em que o significado é mais complexo pelo não acesso ao seu uso social, em determinado momento de suas histórias de vida, as letras aparecem como um quebra-cabeça cujo sentido é reconstruído incessantemente. Lembro-me da história de um garotinho de 6 anos que, após compreender o sentido da escrita, passou a ficar aficionado pela leitura das palavras, tentando decifrá-las ou reconstruí-las. Ele perguntou à sua mãe: “Você consegue olhar para as palavras sem tentar ler?”. É exatamente aí que está o “xis” da questão. Depois de descobrir o sistema da escrita, a criança passa meses tentando destruí-la, reconstruí-la e usa para torná-la sua.
Também recordo de um outro menino que, ao descer o elevador e apertar a letra P referente à portaria, perguntou ao irmão: “Por que aqui não tem aquele T?” – querendo dizer o térreo. Diante da explicação do irmão, o garoto retrucou: “Ah! Então aqui neste prédio o andar de baixo é aquela bola puxada por uma perna comprida?”, referindo-se ao P de portaria. Isso explica como as crianças estão ligadas nas letras e tentam memorizá-las associando-as a formas já conhecidas, dando-lhes características possíveis de uma identificação rápida em seu repertório.
Nesse sentido, letrinhas de sopa, chocolate ou biscoito podem tornar-se ferramentas de compreensão da escrita muito prazerosa. Quando eu era pequena, lembro-me da importância do dia em que jantávamos a sopa de letrinhas. À mesa, disputávamos quem encontrava primeiro as letras iniciais do nome. “Quem já completou o alfabeto? Quantas faltam para finalizá-lo?”, brincávamos. Esses desafios colocam o prazer da escrita no interior de um processo coletivo bastante interessante, vivo e cotidiano.
Gisela Wajskop é mãe de Felipe, 32 anos, e Marcelo, 18, é socióloga e especialista em educação infantil, com diversas pesquisas sobre o brincar. Aqui, ela fala sobre os desafios da educação das crianças.
Fonte: https://revistacrescer.globo.com/